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Memórias em disputa

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A s transições de contextos históricos paradoxais, como no caso ditadura e democracia, são acompanhadas por complexas operações da reconstrução da memória com o objetivo de recuperar as marcas traumáticas, as fissuras deixadas no tecido social e nas instituições. Essas operações são marcadas tanto pelo reavivamento, como pelo esquecimento de muitos fatos, envolvendo atores socais e políticos que disputam a hegemonia desse processo.

De modo que o passado traumático é reiterado por versões que não são permanentes nem inquestionáveis, pelo contrário são (re)construídas a partir dos questionamentos e interesses típicos de uma época. A memória produz sentidos e é também alvo de disputas de diferentes grupos em torno dos seus significados.

Cabe lembrar que a memória é seletiva e política, sendo ressignificada pelas demandas do presente. Portanto, essa memória que condenou apenas politicamente os militares da ditadura brasileira e não juridicamente, uma vez que não foram sequer intimados pela Justiça para responder por suas práticas, é fruto de uma transição negociada. Corolário de uma abertura democrática extremamente lenta, protegida pelos militares que exerciam o controle político e institucionalizava o fim da ditadura na forma de um aparato legal. Observa-se que essa transição no Brasil, neutralizou muitas das demandas por memória.
Assim sendo, no Brasil, dadas as particularidades históricas da transição, a tríade da memória (verdade, justiça e reparação) não se completa. Temos “meias verdades”, porque muitas mortes e desaparecimentos ainda não foram esclarecidos e nenhuma política de justiça efetivada. Portanto, os embates pela memória no Brasil apresentam-se em meio a um paradoxo: a condenação moral da ditadura sem a condenação jurídica dos agentes de Estado.

Verifica-se, ainda que as políticas de memória e o lugar do testemunho se configuram de maneiras plurais, a depender do processo de transição de cada país. O passado não tem um sentido fixo, pelo contrário, está sujeito às disputas de interpretações. Segundo Jelin (2002), as memórias são dinâmicas, mudando ao longo do tempo, dentro de uma lógica de manifestação e elaboração do trauma das estratégias políticas de vários atores, a partir de questões levantadas para inviabilizar a sua repetição.

Na Argentina, como explica Sarlo (2007), antes da transição democrática, mas intensamente a partir dela, ocorreu uma vasta reconstituição de atos de violência estatal por vítimas testemunhas numa dimensão jurídica indispensável à democracia. Assim, esses testemunhos além de terem sido a base probatória para a condenação do terrorismo de Estado, eles também passaram a ser considerados importantes ferramentas de análises fora da dimensão jurídica. Eles oportunizaram recuperar o passado repressivo para construir hipóteses que viabilizaram várias análises posteriores.
 
Quando acabaram as ditaduras do sul da América Latina lembrar foi uma atividade de restauração dos laços sociais e comunitários perdidos no exílio ou destruídos pela violência de Estado. Tomaram a palavra às vítimas e seus representantes (quer dizer, seus narradores: desde o início, nos anos 1970, os antropólogos ou ideólogos que representaram histórias como as de Rigoberta Menchú ou de Domitilia; mais tarde, os jornalistas) (SARLO, 2007, p. 46-47).

Essa proliferação de discursos sobre as consequências da ditadura militar na Argentina se deu através de diversas narrativas em outros meios, como no campo judicial e de comunicação. Essas narrativas foram acolhidas pela sociedade que não encarava essa reconstrução do passado repressivo com desconfiança, exceto os agentes do Estado que, evidentemente, atacavam o valor probatório dos testemunhos.
 
Se excluírem os culpados, ninguém (fora da esfera judiciária) pensou em submeter a escrutínio metodológico o testemunho em primeira pessoa das vítimas. Sem dúvida, teria algo de monstruoso aplicar a esses discursos os princípios de dúvida metodológica (...). As vítimas falavam pela primeira vez e o que contavam não só lhes dizia respeito, mas se transformava em “matéria-prima” da indignação e também em impulso das transições democráticas que na Argentina se fez sob o signo do Nunca mais (SARLO, 2007, p. 46-47). (SARLO, 2007, p. 46 e 47)

 
Portanto, na Argentina pós-ditadura, a memória passa a ser um dever, uma necessidade moral, jurídica e política. Os discursos de necessidade de reparação e justiça vieram à tona e neles se envolveu a sociedade nos anos de 1980 em tempos de redemocratização. Assim, há uma subordinação inevitável do passado rememorado pelas estruturas políticas, sociais e culturais do presente que o aciona.

No caso do fim da ditadura argentina decorreu uma luta não apenas para compreender as vítimas e os atos ocorridos, mas para estabelecer uma significação e atuação jurídica, política e social na transição democrática. As organizações de direitos humanos contribuíram para promover a politização do discurso que clamava por uma elaboração de sentido para aquele passado doloroso que deixou fissuras sociais. Portanto, reivindicava-se justiça com a condenação dos criminosos e a reparação das vítimas pelas práticas de violência cometidas pelo Estado.

Os processos de transição e pacificação de períodos marcados por extrema violência necessitam da reconstrução da memória que visa superar o trauma deixado, a fim de seguir em frente, em outras palavras, passar para uma nova fase. Nessa operação, muitos atores sociais e políticos disputam lugares no processo. Trata-se de uma operação de sentidos da reconstrução dos “discursos da verdade” e definição das responsabilidades jurídicas que assume o lugar de uma luta política pela memória.


“Se excluírem os culpados, ninguém (fora da esfera judiciária) pensou em submeter a escrutínio metodológico o testemunho em primeira pessoa das vítimas”

(SARLO, 2007, p. 46 e 47)
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
JJELIN, Elizabeth. Los Trabajos de la memoria. Madri Siglo XXI. Social Sciense Reseach Council, 2002.
SARLO, Beatriz. Tempo passado. Cultura da memória e guinada subjetiva. São Paulo: Cia das Letras; Belo horizonte: Editora UFMG, 2007.

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