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Lei de anistia no Brasil: Esquecimento comandado

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N o que se refere ao esquecimento, ele tem também um polo ativo relacionado à rememoração, a busca pelas memórias perdidas que nem sempre estão disponíveis. Muitas vezes o passado priva determinados atores de suas narrativas e essa privação é responsável pela mistura de abuso de memória e de esquecimento, afastando o indivíduo ou grupo do equilíbrio e conduzindo-o, consequentemente, aos excessos de um ou de outro.

 
Não existe nenhuma comunidade histórica que não tenha nascido de uma relação que possa se comparar sem hesitação à guerra. Aquilo que celebramos como acontecimentos fundadores são essencialmente atos violentos legitimados posteriormente por um Estado de direito precário. A glória de uns foi humilhação para outros. À celebração, de um lado, corresponde à execração, do outro. Assim se armazenam, nos arquivos da memória coletiva, feridas simbólicas que pedem uma cura (RICOEUR, 2007, p. 92).

Ricoeur denomina de “esquecimento comandado” a memória obrigada decorrente da anistia, mecanismo político que visa, em nome da paz cívica, a promover a suspensão dos processos em andamento, perdoando e esquecendo os crimes cometidos pelos agentes do Estado autoritário. No entanto, a anistia possui uma relação com a amnésia já que promove o apagamento dos rastros do passado, “dos crimes suscetíveis de proteger o futuro das faltas do passado” (RICOEUR, 2007, p. 462).

A anistia começa com os atenienses em 403 a. C com um decreto que proíbe recordar os crimes cometidos pelos partidos denominados de crimes de “infidelidade”. Com isso, os cidadãos em Atenas faziam o seguinte juramento: “não recordarei as infelicidades”. Na atualidade, as democracias utilizam essa forma de “esquecimento por imposição” em nome da paz social. Mas, eis que surge um problema: a anistia não compromete a verdade e a justiça?

Para romper com a violência que afeta a ordem política e a paz civil, a anistia produz uma espécie de estratégia emergencial que inviabiliza a verdade. A extinção da punibilidade, por sua vez, apaga a memória e finge que nada aconteceu. “Mas a anistia, enquanto esquecimento institucional, toca nas próprias raízes do político e, através deste, na relação mais profunda e mais dissimulada com um passado declarado proibido” (RICOEUR, 2007, p. 460)
Como resultado de um confronto entre diferentes demandas, foi elaborada no Brasil a Lei de anistia, Lei 6.683/1979. Havia diversos comitês brasileiros pela anistia, unindo intelectuais, estudantes, advogados, sindicatos e organizações da sociedade civil. Como por exemplo, a Comissão de Justiça e Paz, a Ordem dos Advogados do Brasil, a Associação Brasileira de Imprensa, a Sociedade Brasileira pelo Progresso da Ciência, a Anistia Internacional e o Movimento Feminino pela Anistia.

Esta luta esteve relacionada às denúncias das violações dos direitos humanos pelo esclarecimento de mortes, torturas e desaparecimentos, inclusive, a responsabilização do Estado e de seus agentes e, consequentemente, a reparação das vítimas.


No entanto, a lei aprovada pelo Congresso Nacional, em 28 de agosto de 1979, no governo do último presidente militar João Figueiredo, selava o esquecimento comandado, como pensa Ricoeur. Isso se deve ao fato de a lei ser elaborada antes da extinção do regime, quando os militares preparavam uma transição para um governo civil. O texto da Lei silencia a busca pela verdade, justiça e dificulta a reparação às vítimas e parentes pelos danos causados pelo Estado repressivo.
 
É possível inferir que no primeiro artigo da Lei havia uma clara menção ao que denomina de “abusos do esquecimento”: o anúncio da anistia aos crimes políticos e a polêmica conectividade aos crimes correlatos. Esses tipos penais são relacionados uns aos outros na sua causa e efeito. Além disso, os denominados “crimes de sangue”, ou seja, a luta armada contra a ditadura não foi anistiada. Havia no Brasil, cerca de 200 pessoas presas por esses crimes que acabaram sendo absolvidas, não em decorrência da lei de anistia, mas em razão de outros recursos jurídicos, como revisões de pena ou indulto.

Outro item bastante polêmico, diz respeito ao pedido de revisão da lei de anistia com Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF), apresentado pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) ao Supremo Tribunal Federal (STF). A ação alegava a imprescritibilidade dos crimes de lesa humanidade cometidos durante a ditadura militar, reacendendo as lutas em torno da memória no Brasil. Contudo, em votação realizada nos dias 28 e 29 de abril de 2010, o STF decidiu por 7 votos a 2 por improcedência da ADPF 153, posicionando-se de maneira favorável aos termos da Lei de Anistia.

Esse esquecimento comandado é atuação de agentes que querem silenciar o passado repressivo que nasce de uma necessidade de promover a conciliação, o que acaba resultando no esquecimento da memória política de um país.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
RICOEUR, Paul. A memória, a história e o esquecimento. Trad. Alain François et al. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2007.

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